quarta-feira, 21 de novembro de 2007

O meu pai.

Um dia, durante uma sessão, a minha psicóloga disse-me que eu sofria de mais por algumas coisas, para não ter de sofrer por outras, bem mais dolorosas. Uma espécie de estratégia de protecção masoquista. Nunca percebi muito bem o que ela quis dizer nesse dia. Hoje, acho que finalmente cheguei. Afinal, como ela própria me dizia, "o que é um desgosto amoroso comparado com a dor de perder um pai?". Eu fugia sempre desse assunto. Nunca foi algo de que gostasse de falar muito. Esta madrugada fez três anos que o meu pai faleceu. Quis o destino, naquela noite de Novembro, que o último suspiro dele em vida fosse a meu lado. Era o meu turno.
Assim que soube da doença, procurei de imediato ajuda psicológica. Eu sabia que, por mais força e vontade que tivesse, o meu pai nunca iria vencer aquela batalha. Fiquei apavorado e não queria que ele percebesse isso. Escondi-lhe as consultas ou mesmo os fármacos que tomava. Afinal, nada do que sentia era comparável ao que ele sentia. Às vezes, questionava-me. "O que sente uma pessoa quando lhe dizem ter menos de um ano de vida?". Preferia nem pensar na resposta. Com as consultas, tentei compreender o que se estava a passar, procurei ajuda, um encosto, um ombro e, sobretudo, preparar-me para o futuro. No fundo, a morte dos nossos pais até é a evolução natural das coisas. Nós é que os devemos enterrar e não o contrário. Mas é pura ilusão. Naquela noite, sozinho na sala com ele, vi a pouca vida que lhe restava abandoná-lo. Sabia que o fim estava para breve e, no meio de toda a agonia, só pedia fim do sofrimento. Porém, em breves segundos, percebi que não estava preparado para perder o meu pai. Nunca ninguém está.
Os primeiros dias após a morte são esquisitos. Sentimos o nosso corpo sonolento, sem reacção. Não sabemos bem o que sentir ou pensar. Lembro-me da cara assustada dos meus colegas e professores quando me viram nas aulas no dia seguinte ao enterro. O pior é depois. Os dias continuam, chega a uma semana. Até que vamos pela primeira vez ao cemitério após o funeral. Vemos a lápide e aquelas palavras que todos lêem, mas que ninguém quer perceber: "Eterna saudade". Nesse momento, é como fossemos atingidos por um raio. Comigo foi assim. Naquele instante, percebi que nunca mais na vida iria ver o meu pai.
O meu pai foi um homem fantástico. É normal dizermos todos isto, mas é a mais pura das verdades. Nunca foi daqueles pais que nos leva a passear, a jogar à bola, ao cinema ou nos procura quando se vê nos nossos olhos que estamos apaixonados. Eu estava, ele sabia que eu estava, sabia por quem - toda a gente sabia por quem -, mas ele nunca me questionava. Era um pai de sofá, mas fazia tudo pelos filhos. Tudo. Lembro-me quando fracturei a perna. Enquanto a minha mãe chorava compulsivamente (e eu tinha apenas uma perna fracturada), o meu pai transmitiu-me uma calma enorme. Ia comigo à fisioterapia, buscar-me à escola. Esteve sempre lá. Quando entrei na faculdade, completamente lixado por ir estudar para Setúbal, ele foi comigo fazer a matrícula. Esteve sempre lá. Até a minha profissão foi por sua influência. Se o meu pai não gostasse de futebol e de ler jornais desportivos todos os dias, eu seria o que sou hoje? Duvido. Aliás, essa é uma das minhas maiores mágoas. Saber que o meu pai nunca irá ver o filho a escrever sobre o Sporting.
Hoje, três anos depois da sua morte, mais não posso fazer do que pôr uma rosa junto à lápide, chorar em silêncio e olhar para o Céu. Como sempre o faço. Arrependo-me de não ter falado para todos durante o velório. É algo que nunca farei. Mas devia ter feito. E, naquele instante, teria dito o que digo hoje: o meu pai foi um homem fantástico.

3 comentários:

periodista disse...

É das coisas que mais me assusta. Tenho imenso receio de um dia perder os meus pais, em particular o meu pai. O meu pai também nunca foi de falar comigo se me visse apaixonado, se soubesse que uma relação tinha chegado ao fim...essas coisas. Mas não era preciso. Ele tinha o dom de, sem fazer nada, mostrar que estava sempre ali.

Nem gosto de falar nisto. Queria apenas dizer que nessa altura mostraste uma enorme coragem. Estavas abatido, claro, mas isso era inevitável. Mas no meio de toda a tristeza não te escondeste. Foste grande. Não falaste no velório mas aquilo que ias dizer toda a gente o sabia, sem precisares de dizer. O teu pai também sabe. Nunca teve dúvidas da tua admiração por ele. Abraço

Anônimo disse...

Um dia também ouvirás alguém dizer que és um homem fantástico.

Anônimo disse...

Eu acho que podes ouvir dizer já que és um homem fantástico.